Como o medo de errar tem moldado a nossa sociedade desde a pré-história até hoje

Nas sociedades nômades (ou seja, antes da revolução agrícola, quando os humanos ainda viviam como caçadores-coletores), o medo de errar teve um papel fundamental na lentidão da disseminação de inovações. Esse medo estava enraizado em fatores culturais, sociais e práticos, que juntos criavam um ambiente conservador e de baixo risco, pouco favorável à experimentação. Por que?

  • Os riscos de sobrevivência eram elevados. Em sociedades nômades, qualquer erro podia ter consequências imediatas e graves: uma técnica de caça ineficaz, uma planta mal identificada, ou um abrigo mal construído podia levar à morte por fome, intoxicação ou exposição. Esse ambiente de alto risco favorecia a repetição de práticas testadas e seguras. Inovar era visto como uma aposta perigosa. Mesmo que alguém inventasse uma ferramenta ou técnica nova, a relutância do grupo em mudar práticas testadas impedia que a inovação se espalhasse rapidamente.
  • Não existiam estruturas para armazenar e transmitir conhecimento. Sem escrita, com pequenos grupos humanos dispersos, o conhecimento era transmitido oralmente e de forma limitada. Mesmo que uma inovação surgisse em um grupo, ela podia desaparecer se o criador morresse ou se o grupo se extinguisse. Por exemplo, ferramentas de pedra polida surgiram dezenas de milhares de anos antes de se tornarem comuns, justamente porque sua disseminação dependia de contatos esporádicos entre grupos.
  • Os grupos viviam em isolamento geográfico e cultural, distantes uns dos outros, com poucos contatos regulares. Isso dificultava a circulação de ideias e técnicas. Além disso, um grupo podia desconfiar de práticas de outro grupo por razões culturais ou de identidade. A inovação demorava séculos ou milênios para se espalhar de uma região para outra. Por exemplo, o uso do arco e flecha surgiu por volta de 20.000 a.C., mas só se espalhou amplamente muito tempo depois.
  • Havia entre os diferentes povos um conservadorismo cultural. Tradições orais eram centrais para a coesão do grupo. Alterar uma prática tradicional podia ser interpretado como um desafio à sabedoria ancestral.
    Esse conservadorismo criava resistência à mudança, especialmente se ela viesse de indivíduos jovens ou de grupos externos. A inovação era frequentemente vista com desconfiança e podia ser rejeitada mesmo que fosse útil.

O medo de errar nas sociedades nômades estava profundamente ligado às condições de vida instáveis e arriscadas. Esse medo, aliado ao isolamento, à oralidade e ao conservadorismo cultural, fez com que inovações surgissem lentamente e demorassem muito tempo para se disseminar. Foi somente com o surgimento da agricultura, da escrita e das cidades que o ritmo da inovação se acelerou um tanto.

Com o crescimento das primeiras cidades (como Ur, na Mesopotâmia, ou o Egito antigo), surgiram as civilizações, marcadas por: escrita, governo central, comércio e hierarquia social

A escrita permitiu o registro e disseminação sistemática de inovações (como receitas agrícolas, técnicas de construção, matemática).Os centros urbanos facilitaram o intercâmbio de ideias entre povos diferentes, acelerando a propagação de técnicas e invenções.Os Estados passaram a investir em inovação para fins militares, agrícolas e de construção (como aquedutos, arados, navios), promovendo a experimentação.Mas ainda havia medo institucionalizado, pois a inovação era controlada pelas elites e sacerdotes. Questionar dogmas religiosos ou tradições do Estado podia ser perigoso. Erros administrativos ou fracassos técnicos em grandes obras podiam resultar em punições severas. Lembremo-nos que Galileu Galilei foi condenado pela Inquisição por defender o heliocentrismo (a ideia de que a Terra gira em torno do Sol), contrariando o modelo geocêntrico aceito pela Igreja. A consequência: muitos cientistas temiam divulgar suas descobertas, o que retardou a disseminação de ideias revolucionárias.

Hoje em dia há uma contradição muito real: mesmo vivendo em uma sociedade hiper conectada, com acesso instantâneo à informação, colaboração e exemplos de inovação bem-sucedida, a cultura do “medo de errar” continua profundamente enraizada nas organizações. Isso acontece por várias razões estruturais, culturais e psicológicas:

  • Estruturas hierárquicas e punitivas: muitas empresas ainda operam com modelos rígidos de comando e controle, onde decisões vêm de cima para baixo e o erro é visto como falha de competência. Os funcionários temem ser culpabilizados individualmente por falhas, mesmo em ambientes que falam em “trabalho em equipe”.
  • Cultura de performance e avaliação constante: em tempos de meritocracia extrema e metas agressivas, o erro é visto como ameaça ao desempenho pessoal. Ambientes com avaliações frequentes, rankings e bônus por produtividade criam pressão por acertos imediatos, não por aprendizado a longo prazo.
  • Exposição pública ampliada: em uma sociedade conectada, erros ganham visibilidade imediata — seja por redes sociais, mídia ou plataformas internas. O medo de “errar em público” é psicológico, mas reforçado por consequências reais (vergonha, perda de prestígio, cancelamentos, etc.).
  • Conflito entre discurso e prática: muitas organizações falam em “cultura do erro” ou “inovação”, mas não praticam isso na gestão real. O discurso do “fracassar é bom” só é verdadeiro quando o erro é controlado, documentado, analisado e não punido — o que raramente acontece de forma sistemática.
  • Pressões de curto prazo: Investidores, acionistas e conselhos cobram resultados trimestrais, não aprendizados de longo prazo. Isso limita a margem para falhas que possam gerar inovação futura.
  • Trauma coletivo e histórico: Em muitos países, especialmente na América Latina, o erro é culturalmente associado à vergonha, punição e exclusão. Isso se reflete no DNA das organizações, mesmo na era digital.

A conectividade moderna nos deu ferramentas para compartilhar, aprender e corrigir erros mais rapidamente — mas não eliminou as estruturas sociais e emocionais que alimentam o medo de errar. Para superá-lo, é preciso uma mudança profunda de cultura organizacional: valorização do aprendizado, segurança psicológica, liderança transparente e gestão de riscos inteligente. Novas tecnologias demandam uma transição cultural. Sem isso não há inovação.